Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência.
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo.
Para que havermos de ir juntos?
(Fernando Pessoa)
Pedrinho, o menino-diabo das vizinhanças onde morou - e não eram poucas - carregava sempre de uma para outra as mesmas bramuras, ou as reinventava, ou criava novas, e, consequentemente a mesma fama: um apelido aqui, uma resposta de improviso que parecia elaborado por um experiente conhecedor do mundo, e, para não fugir à regra, algumas muito bem ensaiadas; de modo que era o causador do importúnio geral, e era impossível odiá-lo ou domá-lo. Uma eterna criança. Mas, enquanto todos à sua volta perdiam as esperanças de vê-lo sossegar o facho, Pedrinho crescia intimamente, pensava em outros afazeres...
Um belo dia, cansado já de comprar armas nos supermercados para brincar de guerrear com os coleguinhas da rua, resolveu-se por aventuras de verdade, crescer, sair de casa, conhecer o mundo que todos diziam que ele reviraria de pernas pro ar; tinha, então, dezoito anos e poria o pé na estrada.
Assim o fez. Comprou mochila, maldisse gravatas e horários, rotinas e convenções; despediu-se de todos, declarou seu não-destino e botou-se porta a fora. Mal desceu a calçada, esbarrou em Paloma - outra que estava alçando voo solo - caminhou com ela mais alguns passos até ao altar, e enfiou-se em casa novamente.
Após três anos de felicidade matrimonial, voltou-lhe, outra vez, o desejo de seguir através dos horizontes... mas agora, não estava mais sozinho, nem tão certo. Tinha uma esposa, uma filha; um emprego, que dava para suportar, e só! e acabou por acalmar seu coração.
Passados mais vinte anos, agora de uma monotonia enclausurante (embora o trabalho já fosse suportável: as pessoas se acostumam ao cotidiano ao qual se acorrentam) como se despertasse dos sonhos de menino para quando fosse adulto, das venturas e aventuras que os outros lhe desenhavam no porvir, decidiu não esperar mais. O horizonte, infinito e misterioso, o esperava para ser sulcado e desvendado.
Passou noites em claro, absorto em pensamentos desvairados, infantis até; loucos, pois apenas os loucos se libertam de forma total, por vezes negligenciam as responsabilidades inerentes à liberdade, e não a perdem. Ah como é bom e justo ser doido!... Mas voltemos ao nosso Guevara de meia-idade. Como o adolescente que deixou de ser precocemente, resolveu ganhar o mundo: bem simples assim! Convocou uma reunião de família, no sábado (não teria tempo em outro dia. Talvez no domingo... mas não foi.) foi no sábado à noite, lá pelas nove; nove da noite, para que não façamos confusão.
Bem, as três jovens filhas, ainda solteiras, diga-se, acharam lindo. É, digamos que a caçula não entendeu tudo mas, enfim... tinham herdado aquele espírito convulso e vivaz dos dos meninos que foram os seus genitores. entretanto, a mulher, com um ajuizamento moldado através da história de imposições convencionadas contra as quais este gênero não cessa de lutar, parte mais diretamente interessada e representante das tresloucadas e alucinadas
raparigas, cortou-lhe as asas de imediato:
- Senhor Pedro de Alcântara, aonde quer que o senhor vá, em qualquer momento ou circunstância, iremos todos juntos. Mas hoje não! Hoje é a reprise do último capítulo da novela; portanto, sente-se aí, e por favor, faça silêncio!
A nossa indignação é uma mosca sem asas
não ultrapassa a janela de nossas casas.
(samuel rosa e chico amaral)
homem-aranha, Jorge Vercilo.
http://www.youtube.com/watch?v=RSTIP4KL5Uc&ob=av2n
José
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